terça-feira, fevereiro 24, 2009

Não se trata de descobrir de quem é a culpa

"... Mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus." João 9.3b

Desde o início dos tempos, existe a preocupação em descobrir de quem é a culpa, em achar um responsável.

Já os nossos primeiros pais, quando inquiridos quanto aos motivos que os levaram a esconderem-se de Deus, na virada do dia, quando este vinha para a comunhão de costume, tentaram achar um culpado. Primeiro foi Adão. “Ah, Senhor, se não tivésseis me dado esta mulher... foi ela... a mulher que tu me deste...”. Aos olhos de Adão, em última análise, Deus era o responsável. A mulher, por sua vez, dizia “foi a serpente”...

Tempos depois, um homem chamado Jó, por ocasião de uma grande provação, estando a passar por uma tremenda tribulação, tenta descobrir os motivos para estar sofrendo tão grande dor e, não concordando em estivessem nele mesmo a responsabilidade por experimentar as tamanhas tragédias que se abateram sobre sua vida, levanta suas questões diante de Deus.

Seus amigos se indignam com tal questionamento. Para eles, era certo que o motivo estava em Jó. Necessário, portanto, era descobrir o pecado a ser tratado, pois certamente era ele e tão somente ele o responsável por tudo que lhe sobreviera.

Já em dias menos distantes de nós, os discípulos de Jesus, passando por um homem nascido cego, buscam uma teologia que esclareça um fato como aquele. Fosse ele como o cego da cidade de Jericó, que buscava tornar a ver, poder-se-ia imaginar que era dele mesmo a culpa pela perda da visão. Mas um cego já nascido assim... de quem seria a culpa? Como poderia ser dele? Seria a culpa, quem sabe, dos pais?

Como é difícil lidar com um problema se não pudermos achar um culpado. Nossa lógica lida com causas e conseqüências – seja por um raciocínio linear ou pelo princípio do caos. Mas há que se encontrar uma borboleta que bata suas pequenas asas – que seja! –há que se encontrar um culpado, um responsável, um ponto de partida.

Um bode expiatório é imprescindível... Adão já dizia: é a mulher... Aquela que tu me deste...

Os amigos de Jó o interpelam, querendo fazer uma análise de sua vida – haveremos de achar o ponto de partida de tudo... Vamos ajudá-lo a sair dessa, afinal, amigo é pra essas coisas...

Os discípulos de Jesus também querem compreender: é provável que seja dos pais a culpa da cegueira, afinal ele já nasceu assim...

Mas é Jesus quem responde a grande questão – ‘de quem é a culpa?’: Não é pelo pecado dele, não é pelo pecado dos pais... É para a glória de Deus.

Há pecado no cego, há pecado nos pais. Mas não se trata de descobrir de quem é a culpa...

Humanamente, todavia, essa resposta não serve. O cego poderia até dizer: Ser cego porque mereci, porque eu pequei... é uma coisa! Ser cego porque meus pais pecaram e causaram tudo isso... ainda vá lá. É até mais fácil quando há um outro em quem se possa pôr a culpa. Mas Jesus está dizendo que não se trata de descobrir de quem é a culpa.

De fato, essa coisa é até muito humana. Não é de hoje que aprendemos a culpar os pais, fazer deles um depósito de rancor; não é de hoje que aprendemos a voltar os olhos para o passado, na tentativa de identificar traumas originados na infância, e achar culpados para as próprias imperfeições.

Quem se atreveria agora a dizer ao sofredor, àquele que foi atingido por uma tragédia, ao que foi acometido pela calamidade, a um que, talvez, tenha aprendido a autopiedade como um recurso para suavizar a própria dor, olhando para si mesmo como um coitado que, antes mesmo de ter nascido, antes mesmo de ter podido fazer uma coisa ruim, já tinha sido penalizado por uma culpa que era de seus pais – quem se atraveria?!

Quem se atreveria, a esta altura, a afirmar que não se trata de descobrir de quem é a culpa, que se trata, ao contrário, de encontrar os propósitos por trás de tudo isso?!

É verdade que há quem diga não existir um significado por trás das coisas, um sentido para o que quer que aconteça. Há quem diga que tudo nada mais é do que um mero jogo de causas e conseqüências, e que sempre há um causador, um culpado, que sempre há um responsável...

É fato: sejam os culpados identificados e penalizados e está feita a justiça. Foi assim no caso do cego de nascença, no caso de Jó, no caso de Eva, no caso de Adão. Os culpados foram identificados, a falta foi penalizada – mas sobre o seu representante: o Deus feito homem – Jesus.

Mas, não se trata apenas de descobrir de quem é a culpa. Deus mostrou os culpados e se pôs em seu lugar para a penalização. Justiça plena. Justiça cheia de graça. Entretanto, Deus é ainda maior do que tudo isso. Fez não somente a justiça, mas encheu a vida de propósito. Deu um sentido especial para tudo o que nos acontece.

Não se pode negar que, não apenas a cegueira, mas também todo tipo de doença, com certeza, não existiria no mundo se nele não tivesse entrado o pecado, cuja conseqüência é a morte.

Para além, disso, todavia, enriqueceu Deus a existência humana, fazendo com que, mesmo os males – que advêm da queda – pudessem trazer, por trás de si, um sentido, um propósito. A graça de Deus é mais abundante do que o pecado. É suficiente para cobrir as nossas culpas e ainda transformar nossos males em instrumentos de manifestação de sua glória.

Os discípulos perguntaram por que aquele homem nasceu cego. Mas Jesus respondeu para que ele havia nascido assim: foi para a glória de Deus. Por isso, não se trata mais de ficar apenas tentando achar culpados. Trata-se de enxergar sentido na vida, em cada situação, mesmo na mais difícil. Trata-se de encontrar um significado, vislumbrar o propósito de Deus e, como o cego, entender que, por trás da dor, muito mais do que um culpado, há um propósito que manifestará a glória de Deus.

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Muito mais que odre de água

"Abrindo-lhe Deus os olhos, viu ela um poço de água..."
(Gênesis 21.14-21)


Hagar “ganha” liberdade. E é assim que acontece. A mulher dera à luz um filho para sua senhora - que antes era estéril, mas que, depois, veio a gerar um filho de seu próprio ventre. Tempos depois, no entanto, o filho nascido da escrava caçoava do que fora gerado pela senhora. E isso que resultou na liberdade de Hagar: A dona da casa disse a marido “despede-a”. E ele, mesmo com pesar, a despediu.
Levantando-se de madrugada, proveu-lhes de pão e de um odre de água. Assim ele despediu mãe e filho. Saiu ela andando errante com o menino pelo deserto até a água do odre acabar. Finda a provisão de água, colocou o menino debaixo de um dos arbustos, afastou-se e sentou-se defronte – à distância – para que não visse o filho morrer. Perdidas as esperanças, esgotadas as forças, esquecidas as antigas promessas – ouvidas um dia junto a uma fonte de água, ela se senta no chão e chora. Agora, sem mais perspectivas que não fossem apenas a da chegada da morte, esquiva-se pelo menos de intensificar o próprio sofrimento de ver o filho agonizar até morrer.
O menino, no entanto, clama a Deus e este ouve a sua voz. Das alturas o anjo de Deus fala com Hagar, renova promessas antigas, abre-lhe os olhos para ver um poço de água. Hagar se ergue, então, enche o odre com água do poço e dessedenta o menino.
Não é sua primeira experiência com Deus junto a uma fonte de água no deserto. Na vez anterior, o anjo lhe perguntara “de onde vinha e para onde ia”. Ela se reconhecera fugitiva e foi orientada a retornar à casa, humilhar-se diante de sua senhora. Aquela intensa experiência levou-a a dizer “olhei eu para aquele que me vê”. Aprendera sobre si mesma, olhando no espelho do olhar daquele que a via. Tivera um encontro com o Deus-que-vê.
Nessa sua segunda experiência junto ao poço, descobre que o Deus-que-vê é também o Deus-que-ouve. Ele ouviu a voz do menino que clamava. Ela precisa terminar de aprender a lição com o Deus-que-vê – a lição que ensina a olhar e a ver. E ela precisa também aprender uma nova lição com o Deus-que-ouve – a lição que ensina a ouvir. Olhos e ouvidos viciados têm de aprender as novas lições.
Com o Deus-que-vê, Hagar aprendera a ver a si mesma, porque aprendeu a ver aquele que vê. Ela se viu no espelho dos olhos daquele que vê. Com o Deus-que-ouve, Hagar aprendeu a ouvir. E o que foi que ele lhe disse? “Não temas, porque eu ouvi a voz do menino, daí, de onde ele está".
Hagar aprendeu a ouvir o Deus-que-ouve. E aprendeu que as palavras do Deus-que-ouve - o Deus-que-vê, o Deus-que-fala – muito mais do que meras palavras ditas ao vento, são palavras que trazem à existência coisas que não existem – traz à existência fontes no deserto.
Mas, ao ir à fonte, Hagar obteve muito mais do que um odre cheio de água. Aquele era um momento em que ela podia perceber que depender da provisão humana é depender do que certamente – e muito depressa – acabará. Porque a provisão humana é provisória, passageira e finita. Melhor é depender do criador das fontes, aquele que tem poder para fazê-las brotar no deserto, no lugar exato em que desfalece o sedento. Há uma fonte – da parte de Deus – mesmo no deserto, e nela o odre pode ser reabastecido toda vez que dele a água se esgotar.
Muito mais do que um odre reabastecido, renovado em conteúdo, Hagar encontrara renovação de perspectivas. Aquele que lhe falou das alturas foi também quem lhe abriu os olhos para ver. Sentada ali no chão a chorar, Hagar nada podia ver porque, durante anos, seus olhos estiveram mirando perspectivas humanas de futuro. Viciaram-se na visão limitada do humanamente provável. Aquele odre cheio da água tirada de uma fonte no deserto é resultado de uma renovação de visão e do entendimento de que o seu futuro e o de seu filho consistiam numa história a ser escrita pelo próprio Deus. Aquele odre cheio de água resultou em compreender que a esperança de fazer a própria história à sombra da história de outro resulta em ficar sem nenhuma perspectiva no momento em que se é excluído do foco da história do outro.
Hagar, agora, com os olhos que foram abertos para enxergar o poço, podia ter suas perspectivas renovadas e vislumbrar o desenrolar de uma história ainda não contada, ainda não vivida, uma história baseada nos projetos de Deus para ela mesma e para o seu filho.
O odre-antes-vazio-mas-agora-cheio representava, para Hagar, o fim de uma jornada sem rumo, o ponto final de um andar errante pelo deserto. Ela, que antes sabia de onde vinha, mas não sabia para onde ia, tinha renovadas as promessas e o direcionamento de Deus. Sua vida não mais se resumia em sentar no chão para chorar à espera da morte, embora a morte fosse a expectativa lógica e certa para aquele cujas provisões humanas de água e de pão cessaram. Esperar a morte é esperar o humanamente óbvio. Ao renovar-lhe as promessas, entretanto, renovam-se-lhe, também, as forças, a disposição para levantar, para caminhar até a fonte, para erguer o filho, segurá-lo pela mão, para fazer dele um flecheiro, para conduzi-lo até o ponto de constituir sua própria família, para apoiá-lo até ver cumprida a promessa de ser ele um príncipe e tornar-se um grande povo.
Há muitas fontes que o Criador fez brotar nos desertos da vida, que não podem ser notadas pelos olhos de quem só vislumbra o aproximar-se da morte. Mas a provisão que não se vê não pode ser desfrutada. É preciso ter os olhos desvendados, ter olhos que aprenderam a enxergar.
Como aconteceu com Hagar, há muitos arbustos sob os quais são depositadas as últimas esperanças; muitos caminhos em cujas margens alguém pode assentar-se, chorar e esperar pela chegada do fim. Há muitas promessas caídas no esquecimento durante o tempo de espera. Mas há, acima de tudo isso, um Deus-que-vê o aflito, um Deus-que-ouve o clamor do que desfalece. E ele é capaz de desbloquear o olhar do abatido e levantar-lhe o vigor para caminhar até a fonte das águas frescas.
De fato, aquele foi muito mais do que um odre cheio de água.