terça-feira, dezembro 20, 2005

Aquietai-vos e sabei


Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus.
O SENHOR dos Exércitos está conosco;
o Deus de Jacó é o nosso refúgio.
Salmo 46.10-11

Os autores do Salmo 46 ensinam que não há por que temer, mesmo diante de lutas e de provações. Descrevem uma imensa tempestade e contam de tempos de guerra que a tudo destrói. Convidam para buscar no SENHOR o refúgio em se habita seguro, por mais intensa que seja a tempestade, por mais rigorosa que seja a guerra.
Mas uma coisa é lutar em meio às tempestades que nos cercam e outra, muito diferente, é tratar com elas quando invadem nossos esconderijos secretos, os recônditos da alma e põem lama até a metade das paredes da casa que somos.
A tempestade que invade a alma é também instrumento de destruição. Quebra nossos tesouros antigos, dissolve os papéis de nossas lembranças, de nossos compromissos; mancha e embaça as nossas certezas e despedaça entradas e saídas, consumindo, assim, nossa liberdade – a possibilidade de ir e de vir.
Esse ambiente interior em nada difere da cidade sitiada, de muralhas rompidas, de estruturas destroçadas, com suas casas queimadas e pessoas aprisionadas e feridas.
Quando a cidade esmagada é o mundo interior – os nossos próprios corações –, quando o vendaval da tempestade escurece e torna escorregadio os lugares desconhecidos do espírito humano, já não é um refúgio que nos pode acalentar, mas é a fortaleza que vem como a esperança da alma.
Enquanto o refúgio é o lugar seguro para guardar-nos da guerra e da tempestade ao nosso derredor, a fortaleza é a segurança que age de dentro para fora, instalando, na base mais profunda do ser, a esperança como âncora da alma.
E a âncora não falha: desempenha sua função de conferir estabilidade. Ela não interfere na tempestade, não reduz a força nem a altura das ondas; não torna límpida a correnteza nem diminui a velocidade dos ventos. A âncora da alma – a esperança instalada pela fortaleza – interfere mesmo é naquele que enfrenta a tempestade, firmando, confirmando e fortalecendo o aflito e atribulado.
A razão de tudo isso é que há uma voz que fala do centro da fortaleza; uma poderosa voz que supera o som das muitas águas, o ressoar do vento tempestuoso e o estrondear de armas aterradoras . É isso o que ela diz: "Aquietai-vos". "Eu sou Deus"- estou no controle. "Faço cessar a guerra, quebro o arco e despedaço a lança, queimo os carros no fogo". Por mais intensa que seja a escuridão da noite tempestuosa, assegura a voz que vem do centro da fortaleza: "Estou convosco, aquietai-vos, estou convosco".

segunda-feira, dezembro 19, 2005

O lugar seguro em tempos de tempestade


Ainda que terra se transtorne e os montes se abalem no seio dos mares, não temerei...
Salmo 46.2

Não são muitos os tsunamis na história do nosso planeta. Felizmente. Felizmente, também, as tempestades que fazem estremecer nossas almas também não são muitas. Todo marinheiro, todavia, sabe que as pequenas tempestades são muito mais comuns.
O Salmo 46, da autoria dos filhos de Coré, certamente não está tratando de uma lista de regras para ajudar um marinheiro que sai a navegar. Na verdade, os autores buscam, no contexto das tempestades que vêm sobre os marinheiros que estão no mar, uma metáfora para fazerem alusão às tempestades que alcançam a alma humana.
São muitas e de diferentes intensidades as tribulações que enfrentamos, as tempestades que recobrem os céus dos mares em que navega a nossa alma. Há, inclusive, dias e noites em que as altas ondas são tão bravias que nos fazem pensar que vamos sucumbir sob sua força. Há momentos em que o chão sob nossos pés se transtorna e mais parece areia movediça. Há situações em que as águas tumultuam e expressam grande fúria, lançando-nos para frente e para trás. Os montes se abalam e estremecem – justamente os montes que metaforizam lugar de segurança, o lugar de onde é possível ver o inimigo antes que esse se aproxime demais. Justamente os montes que proporcionam o descanso do tempo nos vales... justamente eles, os montes, abalam-se e estremecem, abrindo-se em fendas perigosas que darão origem aos vales de sombra e de morte.
Na verdade, quem observar com atenção verá que, na vida, há mais tempos tempestuosos do que tempos de calmaria, simplesmente porque há um dinamismo em tudo que existe, qualquer que seja sua ordem, como parte de um grande plano que se encontra em execução. O importante é estar consciente dessas coisas e preparado para elas, correndo para o refúgio e fortaleza que é o SENHOR.
Não importa o tamanho da tempestade, nem a altura das ondas. Não temeremos, porque ELE é socorro bem presente nas tribulações.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Meu refúgio e minha fortaleza



"Ainda que os montes que estão
no seio dos mares se abalem,
ainda que as águas tumultuem e espumejem
e na sua fúria os montes se estremeçam..."
Salmo 46.2
A instabilidade que se percebe na natureza é, provavelmente, resultado do dinamismo que está presente nas leis a que ela obedece, as quais têm, justamente, a função de conferir-lhe estabilidade.
Tudo no universo existe num dinamismo tal que, visto microscopicamente ou pelos menos mais de perto, nas unidades de seus eventos, mais parece a presença do caos. Mas o próprio caos não é ‘caótico’ no sentido de não possuir ordem.
Alguém poderia pensar que os filhos de Coré, na composição do Salmo 46, estivessem refletindo sobre a natureza e sua instabilidade; sobre as relações internacionais e sua instabilidade. Todavia, o Salmo trata da estabilidade e segurança que há em Deus: refúgio e fortaleza. É por isso que as idéias dos salmistas vêm na seqüência em que as encontramos.
Já de início, há uma assertiva "Deus é nosso refúgio e fortaleza". Como se vê, o olhar do compositor está firmado nos atributos de Deus, na segurança que disto procede, tanto da perspectiva interna quanto externa. As conclusões que seguem a assertiva inicial nela se baseiam.
Um perigo que se corre na leitura desse salmo é o de ignorar a palavra ‘portanto’ que estabelece uma relação gramatical de coordenação e não de subordinação entre as orações ‘Deus é o nosso refúgio e fortaleza... portanto não temeremos...". A palavra destacada é uma conjunção que enuncia uma conclusão (não temeremos), baseada no fato de que Deus é nosso refúgio e fortaleza". E por que alguém correria o risco de ignorar tão importante palavra? Por causa de uma outra conjunção que o salmista também usa, "ainda que", na seqüência do texto. Essa sim, cria um laço de subordinação desta oração em relação a "não temeremos". Outras palavras que teriam traduzido muito bem a idéia seriam embora ou conquanto. Tanto essas como as que aparecem aqui em epígrafe, falam de concessão, que o dicionário explica como sendo uma indicação de uma oposição ou restrição ao que se encontra expresso na oração subordinante. Diante dos fatores enumerados, o esperável é que muito se temesse, mas os salmistas dizem ... não ficaremos com medo.
Montes que se abalam, águas que tumultuam e espumejam, montanhas que estremecem são elementos normais de uma natureza que se transforma continuamente, num movimento dinâmico e condizente com suas próprias leis. Nesses elementos atuam forças muito maiores que aquelas que caracterizam os ainda mais dinâmicos e instáveis humanos mortais. Não temer é uma atitude daquele cujos olhos fixam-se não na turbulência dos montes e dos mares, mas no Deus que é refúgio – lugar onde alguém se abriga para fugir do perigo – e fortaleza – constância, segurança e solidez.
Isto posto, é inevitável concluir que não foi do meio da turbulência que os compositores do salmo 46 vislumbraram a Deus, como se estivessem sendo motivados a correr para o abrigo por causa do medo causado por rumores que vinham de todos os lados. Antes, foi do recôndito aconchegante e seguro, de dentro do lugar de refúgio, das alturas da fortaleza – de lá – foi que os salmistas contemplaram o caos e disseram: conquanto tudo se transtorne, nada temeremos.

terça-feira, novembro 08, 2005

Mas a torrente secou...



Então, Elias, o tesbita, dos moradores de Gileade, disse a Acabe:
Tão certo como vive o SENHOR, Deus de Israel, perante cuja face estou,
nem orvalho nem chuva haverá nestes anos, segundo a minha palavra.
Veio-lhe a palavra do SENHOR, dizendo:
"Retira-te daqui,
vai para o lado oriental e esconde-te junto à torrente do Querite, fronteira do Jordão.
Beberás da torrente; e ordenei aos corvos que ali mesmo te sustentem".
Foi, pois, e fez segundo a palavra do SENHOR;
retirou-se e habitou junto à torrente de Querite, fronteira ao Jordão.
Os corvos lhe traziam pela manhã pão e carne, como também pão e carne ao anoitecer;
e bebia da torrente. Mas, passados dias, a torrente secou, porque não chovia sobre a terra.
I Reis 17.1 a 7

Acima lê-se a narrativa de um encontro entre o rei Acabe e um dos profetas mais conhecidos da história dos judeus. A narrativa conta o fim de uma conversa do profeta com esse rei cujas ações vinham demonstrando um desvio em relação às crenças de seu povo. Nessa conversa, o profeta anuncia ao rei que, em conseqüência de suas ações, aquela nação sofreria uma ação disciplinadora da parte de seu Deus.
Lendo esse texto em busca de edificação espiritual, não pude deixar de notar determinados pontos que me pareceram muito relevantes, como também de inferir algumas instruções que são preciosas para minha vida:
1) "Tão certo como vive o Senhor" - as palavras anunciadas pelo profeta não são dele mesmo. Ele as ouviu de um Deus que vive. E esse fato - o de que ele é um Deus que vive - não é mera pressuposição do profeta. Tão certo quanto Deus vive, aquilo que suas palavras anunciam acontecerá. Quando, mais tarde, de fato, aconteceu, todos podiam saber que o Deus que falou ao profeta era mesmo um Deus que vive.
2) "Deus de Israel" - o anúncio de que Deus agiria de modo disciplinador não era um sinal de que ele tivesse deixado de ser o seu Deus. Pelo contrário: era um ato disciplinador e não ato de vingança. Ele os disciplinaria exatamente para mostrar-lhes que ele se importava com o modo como vivam. Não lhes era indiferente.
3) "perante cuja face eu estou" - isso é o que pode explicar o poder que se evidencia na vida desse profeta. A vida daquele que está perenemente perante a face de Deus não pode ser menos do que espetacular. Mas, pela mesma razão, sua vida causava grande impacto sobre a vida de outras pessoas, além de ser motivo de incômodo para os que servem ao reino da morte. Elias pertence ao reino do Deus que vive. Estar perante a face de Deus é usufruir da possibilidade de saber de si mesmo, de alcançar consciência da própria identidade. Isso se deve ao fato de que, quando Deus criou o homem, ele o fez à sua imagem e à sua semelhança. Estar perante sua face é esquivar-se da crise resultante da ignorância acerca de si mesmo, pois, sendo nós a sua imagem, contemplar a face dele é conhecer nossas origens e descobrir quem somos nós. De fato, é voltar à posição singular na qual encontramos respostas para nossas indagações mais profundas acerca da pessoa que somos. Essa é a razão porque o profeta tem a força e a firmeza que suas palavras demonstram. O profeta é a imagem e semelhança de seu Deus.
4) "nem orvalho, nem chuva durante três anos" - para um povo que habitava a região da Palestina, não ter chuva pelo período de três anos representava uma verdadeira catástrofe. E, embora estivessem acostumados a aproveitar o orvalho especialmente nos períodos de seca, o profeta acrescenta: "nem orvalho". As pessoas haveriam de comer e de beber o que já tinha sido colhido, o que já tinha sido ajuntado. Depois disto, a maior certeza era a morte. Deus é severo. Não é de brincadeira. O seu povo é obstinado em sua rebeldia. E o seu profeta mantinha a postura de quem estava constantemente perante a face do Deus vivo.
5) "segundo a minha palavra" - essa é, de fato, uma expressão muito forte na fala do profeta. Ele conhecia bem a quem estava servindo. Sabia que seu Deus honraria a palavra de seu profeta. Nenhum de seus termos estava em insegurança. Nessa hora, Nessa hora, a palavra do profeta é a palavra do seu Deus e, portanto, infalível.
6) "Veio-lhe a palavra do Senhor" - isso além de reafirmar o fato de que Deus está vivo mesmo, mostra que são dele as iniciativas. Ele está na posição de SENHOR. Sua fala é inteligível e o seu profeta o compreende. Ele é um Deus pessoal que se comunica direta e pessoalmente com o seu profeta, seu servo. Mas sua fala também cria oportunidade para que a fé de seu servo se reafirme, porque dá ordens e faz promessas. Manda-o para uma região onde há uma fonte de água (mas que em breve deverá secar-se) e ficar à espera da providência do alimento que virá de forma bastante incomum (trazida por corvos ordenados por Deus a sustentarem o profeta).
7) "Foi, pois, e fez segundo a palavra do SENHOR" - por mais estranha que fosse a ordem do SENHOR, o seu servo - em perfeita interação com ele - reage de forma a mostrar sua confiança na promessa sobrenatural de Deus e sua dependência absoluta dele. Não questiona. Não refuta. Obedece. Não em parte, mas completamente, 'segundo a palavra do SENHOR'. Está pronto a obedecer de imediato, sem vacilar.
8) "Os corvos lhe traziam pela manhã pão e carne, como também pão e carne ao anoitecer; e bebia da torrente" - um cardápio simples, mas completo. Ele dá o pão para cada dia, suprindo as mais básicas necessidades de seus filhos. Na medida: sem sobrar se sem faltar, pela tarde e pela manhã. Deus conhece a estrutura daqueles que ele mesmo arquitetou e construiu. Cumprindo cada parte de sua promessa. Não bênção pela metade. Além disso, dispõe de todos os elementos de sua criação. Tudo lhe pertence e está a seu serviço.
9) "Mas ... a torrente secou" - findou-se esse tempo na vida do profeta, durante o qual ele esteve vivendo de si para si mesmo, numa postura passiva, de total dependência. Como disse o sábio Salomão, há tempo para todo propósito debaixo do sol. Houve um tempo para o profeta ficar à mercê do inteiro cuidado de Deus que supria totalmente suas necessidades através de meios externos ao profeta, mas agora ele está no limiar de um tempo em que ele será usado para suprir a necessidade de outros. Entre esses dois momentos está a fonte que seca. A fonte seca e isso prova a fé do profeta que aguarda novas orientações e novas promessas de Deus. Haverá Deus de continuar a suprir suas necessidades mais básicas agora, justamente agora, quando a seca é mais intensa e quando a terra nada produz e a fome se multiplica nas casas? Mas se o secar da fonte representa um momento de prova da fé que o fará continuar dependente de Deus, representa também a confirmação de Deus para com a palavra do profeta dirigida ao rei. De fato, tão certo como vive o Senhor, a chuva não veio, a fonte secou. E então o profeta há de sair desse retiro e ir ao encontro das pessoas que sofrem porque todas as fontes secaram. É a hora quando Deus lhe diz: ‘Vai à cidade de Sarepta..."
É inevitável perceber que o profeta de Deus anuncia sua palavra e, às vezes, trata-se de uma palavra de disciplina para com aqueles a quem Deus quer reaproximar de si mesmo. O calor dessa ação poderosa de Deus, produz efeitos que atingem também ao profeta. Ele não está imune às dores que advêm das ações disciplinadoras de Deus para com aqueles que cercam o profeta. De fato, a maior parte dos sofrimentos que se experimenta aqui, neste lado da eternidade, são meras conseqüências de viver-se num mundo atingindo pela queda no pecado. Assim como se deu com o profeta, não estamos livres das conseqüências de ações de pessoas rebeldes contra Deus, mas estamos sobrenaturalmente protegidos de seus efeitos. A 'vara' de Deus sobre os que insistem em rebelar-se contra ele, tem suas ressonâncias sobre mim. Mas também, como aconteceu com o profeta, devo estar disposta a obedecer-lhe incondicionalmente, por mais absurdas que me pareçam suas ordens e até mesmo suas promessas. É isso que me levará a desfrutar da poderosa ação de Deus, que é SENHOR sobre toda a natureza, suprindo-me nas mais básicas de minhas necessidades.
E quando a fonte secar, será sábio agir como agiu o profeta: sem queixumes, sem lamentações. Os lugares mais promissores podem tornar-se em alvos de ataque, visados por inimigos. Será a oportunidade para trocar a solidão do lugar seguro por aqueles onde estão pessoas necessitadas às quais Deus abençoará por meu intermédio.
Com Deus, a vida não é uma rotina interminável, carregada de mesmices. Pelo contrário: Deus transforma nossas vidas em grandes aventuras cheias de novidades.

quinta-feira, novembro 03, 2005

Conversando com o Pastor das ovelhas

Eu sou o pastor das ovelhas. Sou o bom pastor.
Eu conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem.
Eu as chamo pelo nome elas me seguem,
porque conhecem a minha voz.
Eu sou a porta das ovelhas.
Quem entrar por mim achará pastagens.
Encontrará liberdade para ir e vir.
João 10 (paráfrase)

Inicio a grande aventura de seguir, como ovelha, ao meu Bom Pastor que, ao abrir a porta do aprisco, conduz-me para fora – para as boas pastagens, para o exercício físico e para teste disciplinar; para as águas frescas e para aprender a andar sempre nos caminhos das justiça. A cada dia, reinicio essa aventura e ela é, em cada uma das vezes, inimaginavelmente nova.
Aprendo, desde cedo, a segui-lo mesmo para os vales sombrios, onde a sua presença é ainda mais sensível e também mais urgente e a disciplina é fundamental. Descubro que nesses vales é que as águas são incrivelmente frescas, como em nenhum outro lugar. É ali que a paisagem tem um encanto tal que eu bem poderia dizer que é um verdadeiro espetáculo, um show de beleza indescritível.
Está-se desenvolvendo o processo de aprender a encarar o adversário de frente, sem, todavia, estabelecer qualquer relação com ele. Sento-me à mesa do meu Pastor, em íntima comunhão com ele. Sua presença é deliciosa e ele manda que eu seja servida do manjar cujo sabor as palavras não dão conta. Sou ungida com óleos tais que refrescam desde a superfície de minha pele até os ressecamentos mais profundos de minha alma. Ao servir a minha taça, enche-a até transbordar. Parece mesmo fabuloso que tudo isso se dê perante os olhos de quem se fez meu inimigo e que muito se desagrada da cena que assiste. Assiste furioso, mas impotente: estou à mesa de meu Pastor.
Cada dia, torno a constatar que esse é mesmo o Criador que viu sua obra de arte quebrar-se e parecer arruinada, mas que é Todo-Poderoso o suficiente para conceder à minha pequena e frágil alma a graça de uma existência substancialmente livre e ousada, cercada de bondade e misericórdia, num mundo que jaz no maligno. Mas o melhor de tudo isso é saber que assim será até aquele dia quando, mais que sua hóspede de honra, instalar-se-á a adoção, o meu estabelecimento definitivo na posição de filho na casa onde passarei a habitar por dias que não terão fim.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Renovação paulatina

Pouco a pouco, os lançarei de diante de ti, até que te
multipliques e possuas a terra por herança. Não
os lançarei de diante de ti num só ano, para que
a terra se não torne em desolação e as feras
do campo se não multipliquem contra ti.
Êxodo 23.30-31

O texto em epígrafe é parte das orientações dadas a um povo que estava sendo tirado de uma terra onde tinham sido escravos por mais de 400 anos. Através dessas palavras, seu Deus lhes faz uma promessa de desocupar a terra que já lhes pertencia desde antes de seus anos de escravidão e que fora ocupada por outros povos. Todavia, esclarece que não vai desocupá-la toda de uma vez, mas há de fazê-lo paulatinamente, na medida que eles se fossem multiplicando. Caso contrário, a terra poderia ser invadida por feras.

Essa narrativa me faz lembrar de uma coisa que ouvi, certa vez, de um amigo psicólogo. Ele dizia que, quando lidava com situações em que as pessoas estavam inseridas em crises muito intensas e iniciadas já há muito tempo, as terapias nunca visavam a extinguir abruptamente tais crises. A razão é que, quando as pessoas lidam há muito tempo com situações que absorvem seu tempo, sua atenção e sua energia, elas vão-se tornando dependentes de tais crises. Extingui-las, abruptamente, seria o mesmo que retirar-lhes a base de sua sustentação, o motivo pelo qual, em última análise, elas vivem. Desse modo, o terapeuta deveria trabalhar no sentido de conduzir essas pessoas a encontrarem novas fontes de motivação para a vida. E, somente, quando coisas novas fossem ocupando o espaço em suas mentes e corações, é que poderiam ir desocupando-se das antigas ocupações. É incrível pensar nisso. Existem pessoas que são sustentadas pelas mesmas coisas que as atormentam. Lembro-me de um trecho de um poema barroco, intitulado "A uma ausência" do escritor português, Antônio Barbosa Barcelar, que diz justamente isso:

"Sinto-me sem sentir todo abrasado
No rigoroso fogo, que me alenta,
O mal, que me consome, me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado"

De fato, Deus conhece a estrutura do ser humano. É isso que somos. Nosso ser não é mais que uma ausência. Ocupamo-nos desesperadamente das coisas que tocarem as nossas vidas. Às vezes, algumas delas tocam nossos corações, consumindo-nos e dilacerando-nos. E, no entanto, não buscamos extingui-las, porque sabemos que o vazio, a ausência, é pior que qualquer outro mal. Não sabemos viver uma vida sem propósito. Mas há propósitos que queimam como fogo, enquanto insistimos em pensar que eles apenas nos alentam.
Eu entendo que é por isso que, quando encontramos em Deus o grande e único propósito que nos sacia com o bem verdadeiro, ele nos conduz, daí em diante, num tratamento que varia de uma para outra pessoa, da perspectiva temporal. Conquanto a obra de Deus no ser humano seja plena desde o primeiro encontro com ele, há uma caminhada a ser feita, durante a qual o Espírito dele vai enchendo a vida da pessoa de fruto e livrando-a dos ranços oportunistas e parasitários de uma vida velha. Se pensarmos bem, às vezes não temos, para com as pessoas, nem com nós mesmos, a mesma paciência que vemos em Deus.

Quando o povo, que fora libertado de sua escravidão, foi levado à terra que outrora era deles e agora voltaria a ser, eles tiveram que aprender a sabedoria de esperar a desocupação paulatina da terra, a qual iria acontecer na mesma medida em que fossem se multiplicando. Tomar posse da terra envolveria um processo de dupla face. Por um lado, era preciso que a terra fosse desocupada; por outro, era preciso crescer. E tudo isso num dinamismo tal que fosse capaz de impedir a acomodação na situação de crise.

Esse processo me ensina muitas coisas: É preciso saber quem sou, saber que sou distinto daquilo que, porventura, invadir a minha terra, o meu espaço, a minha vida, seja lá o que for. É preciso, ainda buscar ocupar a herança que me foi dada, o que farei na mesma proporção em que aprender a despir-me do que cheira à antigüidade, na mesma proporção em que aprender a despedir-me dos fantasmas que se negam como tais, na mesma proporção em que valores novos passam a encantar o meu olhar.
É, assim, através deste processo, que vou deslocando o meu investimento de tempo, atenção e energia para as coisas que são totalmente novas.

segunda-feira, outubro 24, 2005

Sendo servido ao servir


Então, lhe veio a palavra do SENHOR, dizendo: Dispõe-te, e vai a Sarepta,
onde ordenei a uma mulher viúva que te dê comida.
Então, ele se levantou e se foi a Sarepta;
chamou a viúva e lhe disse: Traze-me, peço-te, uma vasilha de água para eu beber.
Traze-me também um bocado de pão na tua mão.
Porém ela respondeu: Tão certo como vive o SENHOR, teu Deus, nada tenho cozido;
há somente um punhado de farinha numa panela e um pouco de azeite numa botija;
vou preparar esse resto de comida para mim e para o meu filho;
comê-lo-emos e morreremos.
Elias lhe disse: Não temas;
assim diz o SENHOR, Deus de Israel: A farinha da tua panela não se acabará,
e o azeite da tua botija não faltará, até ao dia em que o SENHOR fizer chover sobre a terra.
Foi ela e fez segundo a palavra de Elias; assim, comeram ele, ela e a sua casa muitos dias.
Da panela a farinha não se acabou, e da botija o azeite não faltou,
segundo a palavra do SENHOR, por intermédio de Elias. I Reis 17.8-16

A situação inicial
A fonte que supriu Elias durante os dias iniciais da seca que sobreveio à sua terra secara. Durante aqueles dias, o próprio Deus encarregou-se de suprir o seu profeta de alimento, enviando-a por meio de corvos. A


A nova ordem

Então, a palavra do Senhor veio novamente ao profeta, dando-lhe uma ordem, humanamente questionável, pois não havia água, não havia comida: "sai de onde estás, da tua terra (da região de Querite, a leste do Jordão, pouco distante do Mar Morto) e vai à Sarepta, que pertence a Sidom." O profeta não questiona. Apenas obedece. Parte para uma longa viagem. Não havendo água, nem comida, não se sabe como ele será sustentado durante a viagem, pois não é mencionado no texto. Nada sabemos e, provavelmente, nem mesmo o profeta o sabia. Era uma questão de confiança.

Em meio a escassez

Ao chegar à cidade, muito provavelmente, foi reconhecido como profeta, por causa de seus trajes característicos. E, tão logo viu a viúva, pediu água. Acrescentou outro pedido: pão. A resposta da viúva foi surpreendente: "não tenho nada pronto. Mas tenho um punhado de farinha e um pouco de azeite. Estava ainda agora indo preparar a última refeição para mim e para meu filho. É tudo que tenho. Comeremos e depois moremos." Na seqüência do diálogo, o profeta, lhe diz que preparasse sim, mas para ele primeiro. Só depois haveria de preparar para ela e para seu filho. Depois de teres dado prioridade de servir a Deus, que resolveu suprir a necessidade de seu profeta através de ti - esclarece o profeta (porque não se tratava de um ato de egoísmo de sua parte) - "verás que o azeite não acabará na botija, nem a farinha na panela."

Escolhendo entre o que se vê e o que se não vê

Era uma ordem difícil de obedecer, seguida de uma promessa difícil de alguém querer correr o risco de perder. O raciocínio lógico conduziria ao pensamento de que ela poderia fazer uma última refeição, da qual tinha certeza e, com a mesma certeza, aguardar a morte para si e para seu filho. Ou, ela poderia abrir mão de comer com seu filho aquela última refeição que seus olhos provavam estar lá, numa atitude de fé na promessa de que não morreriam de fome, pois o suprimento viria da parte de Deus para muitos dias.
Ela preferiu abrir mão de que via em benefício da esperança de alcançar o que ainda não se via. Foi, fez como o profeta orientou. E, de fato, a promessa se cumpriu: a farinha não se esgotou da panela, nem o azeite da botija.

Aprendendo a lição do texto

Embora esse texto seja carregado de simbolismos, não os quero explorar aqui. Quero guardar, desta vez, a mensagem que salta do texto: Deus, comprometido com seu servo profeta, comprometido em sustentá-lo em dias de seca e de fome na terra, abençoa com fartura uma viúva pobre, cuja esperança era comer a última refeição com seu filho e sentar à espera da chegada da morte, sem nenhuma alternativa. Muitas lições essa narrativa traz ao meu coração.

1) Escolher com sabedoria e motivado pela fé: Aquela viúva poderia ter preferido optar pela comida certa, na frente dos seus olhos para não antecipar a inevitável morte – afinal ela pertencia a outro povo que não servia ao mesmo Deus do profeta –, e não faltariam outras pessoas a quem Deus pudesse abençoar para sustentar o seu profeta. Fico pensando que esse é um princípio característico do modo de Deus agir. Muitas vezes a oportunidade de ajudar e de servir bate à minha porta. Preciso estar atenta para não deixar passar tal oportunidade de ver Deus suprindo abundantemente minhas necessidades com o objetivo de suprir a necessidade de seus enviados. Não posso deixar de perceber que, primeiro Deus ordena a doar, espera minha resposta de confiança na palavra dele, para então, e tão somente então, fazer transbordar a minha dispensa.

2) Repartindo o pouco e vendo-o tornar-se no suficiente: Por outro lado, não posso deixar de observar que Deus não escolheu uma pessoa abastada para suprir a necessidade de seu profeta, tornando-a, ainda mais abastada (certamente, para que a tal pessoa abastada jamais gabasse de si mesma, dizendo que foi abençoado por dar daquilo que já era seu - como se o que ela tinha já não fosse uma dádiva de Deus). A viúva doou de sua pobreza, do pouco que tinha.

3) Reconhecendo a soberania de Deus na escolha de seus instrumentos: Ao olhar o texto por esse ângulo, o que percebo é que o profeta não questionou a Deus, com soberba, achando que fosse um absurdo Deus mandá-lo a uma terra estrangeira para ser sustentado por uma viúva à beira do desespero. O fato é que ninguém é miserável demais, ninguém é tão pobre que não possa ser usado por Deus para abençoar. Além disso, quem determina o instrumento de bênção é o abençoador, não o abençoado. Infelizmente, ou felizmente (quem sabe?) geralmente as pessoas de menos posses são as que têm coração mais aberto para abençoar a outros, mesmo em face de grande pobreza.

4) É preciso aprender a honrar os enviados de Deus: Esse episódio é citado por Jesus muitos séculos mais tarde, para dizer que um profeta não tem honra em sua própria terra. É assim que ele diz: "quantas viúvas havia em Israel naqueles dias? Mas a nenhuma delas foi enviado o Elias, senão à viúva de uma terra estrangeira, à viúva de Sarepta, em Sidom". Espero que Deus me ajude a não desonrar aqueles que são levantados por ele para falar em minha terra, no meu contexto, à minha vida.